terça-feira, 17 de março de 2009

A instrutora-mor dos meus voos



Hoje resolvi praticar montanhismo urbano. Escalar edifícios. Comodista como sempre, escolhi o mais perto: o da minha memória. É um prédio e tanto. Garboso e arejado. Nem sei quantos andares tem, porque muitos se misturam ou saem a vadiar, mas sempre sobram aqueles para contar histórias. Aportava ainda o primeiro pavimento quando Maria Ferreira de Araújo surgiu. Maria Ferreira de Araújo, minha avó.

- Toma, Álvaro. É um trocadinho, mas não gasta em besteira.

Referia-se a bebida, cigarro e farra, estas coisas essenciais à vida. Como de costume entregou-me algumas notas enroladas no plástico. Havia cruzados novos, da época do Sarney, e cruzeiros do tempo do Larápio das Alagoas. E como de costume o dinheiro estava defasado. Não por culpa dela e sim das sucessivas alterações monetárias no Brasil. Válidas ou não, aquelas cédulas simbolizavam o esmero da solidariedade. Minha avó poupava sem ter. Aliás, é assim. Quem tem gasta e quem não tem guarda.

Ela sempre juntou. A cada dia 5 recebia a miserável pensão do INSS. Vociferava durante 15 minutos, profanava todos os cargos do executivo, incinerava os ocupantes e, já refeita, sorria e me comunicava: “Domingo tem festa”. Tinha mesmo. Donde estivéssemos – no residencial frio e insalubre da Dona Vicentina, no compacto apartamento do Grande Hotel ou no misterioso castelo da APAE –, neste dia colocava o vestido estampado ou o tailleur creme, arrumava-me com a melhor roupa e tomávamos o rumo da rua.

Primeiro a galinha com polenta, em qualquer lugar onde a mesma se encontrasse, e depois o cinema. Sempre às 13h45 passávamos a roleta para degustar dois filmes – em Livramento tinha sessão dupla no Cinema Internacional, o nosso reduto. Uma coisa é certa, o hábito induz o monge. Durante anos, bastava eu passar por algum guichê semelhante a uma bilheteria para, inconscientemente, perguntar qual seria o filme naquele dia. Daí ganhei das repartições públicas e dos bancos a tacha do engraçadinho, debochado, sarcástico. Pura injustiça.

O fascínio pelo cinema advinha do apreço pelo estudo. No caso da minha avó, claro. Estudara o correspondente à metade do ensino fundamental. Entretanto, emanava sapiência e gosto pelas letras. Verdade seja dita, a caligrafia da Dona Maria equivalia a uma pintura. Das belas, lógico. Eu tentava imitá-la, porém me faltava o talento.

Do mesmo modo esforçava-me para compreender as minhas idas ao colégio naqueles dias de renguear cusco e engripar pinguim. À beira da janela, 7h45 da manhã, vidro embaçado, ar ártico e o vento minuano a devastar os ouvidos, amontoava as palavras e inquiria, tal qual um pré-socrático injuriado ante as intempéries do raciocínio lógico:

- Pra que estudar, vó?

- Para voar.

Nunca mais esqueci.
Hoje, vó, começo o estágio pós-doutoral no Instituto de Estudos Jornalísticos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, aqui em Portugal. Obrigado, Maria Ferreira de Araújo Nunes, por me ensinar a voar.

Um comentário:

Ju Martins disse...

Que lindo seu texto. Invejo o seu dom...