quarta-feira, 23 de janeiro de 2013
Rosamaria faz 70 anos
Conheço Rosamaria Araujo Nunes antes mesmo de nascer. Nove meses, para ser exato. Vivia eu da perambulagem, a esmo. Suscetível a ilações luxuriantes e permeável a descalabros pecaminosos. Sina da errática existência microgamética. A filha do contabilista Aufredi Nunes e da dona de casa Maria Ferreira de Araujo acolheu-me por 36 semanas. Tempo de vida mansa. Manhãs e tardes a fio a balouçar, de leste a oeste, em macias redes placentárias. Noites agradáveis, coberto por suaves lençóis amnióticos.
Rosamaria sempre me pareceu personagem bíblica. Fez-se luz a pelo menos 4 pessoas. Incontáveis vezes separou as águas e abriu pedras para os filhos passarem. Acreditou e desacreditou tanto dos falsos quanto dos verdadeiros profetas. Por vezes foi negada e traída pelos pedros e judas desta vida afora e quieta ficou, sem comemorar, quando cada um destes em estátua de sal transformou-se. Amou com a mesma intensidade do vigor dos milagres, porque, avisara Paulo por intermédio dos Coríntios, desprovida do amor ela nada seria.
Rosamaria presenciou, em três décadas como funcionária da Caixa Econômica Estadual do Rio Grande do Sul, os vendilhões a locupletarem-se à custa dos templos, cargos e dinheiro público. Nas madrugadas como enfermeira no Conceição, na zona norte de Porto Alegre, afeiçoou as provações de Jó em fé, cura e solidariedade aos enfermos e necessitados. A cada retorno ao pequeno apartamento em frente ao hospital multiplicava o café da manhã. Aos filhos destinava os escassos leite e pão, e a ela o café puro e força.
Rosamaria também soube ser salomônica. Cansada do desgastante exercício diário da divisão dos peixes, resolveu-se pela diáspora filial para vencer a perseverante e corrosiva estiagem financeira e poupar o rebanho da dificuldade. Manteve ao lado a primogênita, Laura, e pôs os outros cada qual em um ninho. Fiquei em Livramento com minha avó, meu irmão André foi morar em Faxinal do Soturno, com o avô, e Rosana, a menor, aninhou-se nos braços da tia Lucila. Quatro anos depois Rosamaria reagruparia os rebentos, doravante afastada da indigesta sombra da penúria material.
Agora, aos 10 anos, eu vislumbrava Rosamaria como uma figura histórica: Cleópatra. Desprovida, logicamente, daquelas riquezas, mas amparada pela pirâmide de livros disposta na cabeceira. Aquela construção literária no meio da cômoda à beira da cama a deixava portentosa, resplandecente e mais linda. Impressionante como o livro embeleza uma pessoa. A partir daí comecei a presenteá-la todo ano com aquele objeto retangular mágico. Mandei, inclusive, erguer uma pirâmide para ela só com a obra do Rubem Fonseca. Foi a glória.
Passei então a ver Rosamaria como uma águia. Lá no topo das páginas, imponente e bela, atenta aos relatos das brisas e ao canto das rochas. Um farol no ponto mais alto do arco-íris, olhando em direção ao chão para não pisar nas pessoas e nem tropeçar em cordilheiras e vales. A rosa dos meus ventos. Por isso, Rosamaria Araujo Nunes, parabéns pelo dia de hoje. Por bem seres, bem saberes e principalmente por bem teres a nós como bens. Feliz aniversário, mãe.
Porto Alegre, 22 de janeiro do ano 70 d.R.
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