terça-feira, 25 de novembro de 2008

Aigolonozama


Por trás da falta de palavras

Marina Silva - para o Terra Magazine - Terça, 25 de novembro de 2008, 07h21

"Tem que parar de desmatar para que os animais que estão extintos possam se reproduzirem e aumentarem seu número respirando um ar mais limpo". Esta e outras afirmações foram feitas no exame nacional do ensino médio.

São as famosas "pérolas do Enem", que circulam todo ano na internet. Sempre tenho dúvidas sobre a veracidade desses relatos, mas, desta vez, li a respeito no texto de um colunista do jornal Correio Braziliense ("Amazonologia", Eduardo Reis, 15/11/2008), que os trata como autênticos.

Se as frases por ele reproduzidas são de fato provenientes das redações do Enem sobre meio ambiente e Amazônia, estamos diante de um gravíssimo adoecimento educacional do país, que essas provas deixam mais evidente. E, o que é pior, os jovens vítimas dessa situação são ridicularizados, como se fossem uma espécie de "palhaços" trágicos da nossa incapacidade coletiva de superar um dos piores passivos nacionais, que é o da educação.

Duas situações convivem nesse universo. Uma, a dos estudantes cujas famílias têm meios para lhes dar suporte escolar e um ambiente doméstico com bom acesso à informação. Outra, a dos estudantes que remam contra a maré da pobreza, da falta de condições materiais em casa e do arremedo de escola. Estes são duplamente atingidos porque são também humilhados, como se a condição de pobreza, que os afasta dos meios para melhorar a performance escolar, significasse uma incapacidade inata.

Mas, lendo com atenção as frases, é possível fazer uma colheita de pérolas verdadeiras, de grande valor. Na verdade, seus autores revelam uma preocupação pertinente e relevante com a Amazônia, embora não tenham as palavras corretas para expressá-la. Fazem um esforço para identificar problemas ambientais reais, mas em boa parte dos casos talvez lhes faltem os jornais, o acesso à informação, a intimidade com a linguagem culta. Falta-lhes escola de qualidade.

E, no entanto, por meio de sua linguagem torta, dizem muito. No seu esforço para escrever há uma intenção e uma informação. A intenção é de proteger o meio ambiente e a Amazônia. A informação que nos chega, de forma indireta, é a de que as camadas mais pobres do país e, portanto, as que têm menos oportunidades de educação formal, conhecem a importância desse tema. Sabem que é preciso cuidar da biodiversidade, evitar os desmatamentos e queimadas.

Esses jovens, a despeito da falta de apoio, têm o mérito de ter conseguido entender a visão básica de conservação e de conceitos sócio-ambientais complexos. Se "traduzirmos" suas frases, o que está dito é: o que acontece na Amazônia tem repercussão mundial; a Amazônia é explorada de forma impiedosa; vamos nos unir para salvar o planeta; o homem destrói a floresta e isto tem que ser coibido; o desmatamento ilegal é a principal causa da devastação; o processo de extinção de animais é grave; a emissão de poluentes contribui para a destruição da floresta; há empresas que lidam com a floresta da maneira correta; as queimadas destroem os habitats da fauna; a Amazônia tem valor inestimável; devemos parar e refletir. Alguém discorda?

Também, à sua maneira, falam do corte ilegal de árvores, da necessidade de leis, da responsabilidade dos governantes, da má política, da necessidade de ações preventivas, do aumento do aquecimento global. Têm noção dos temas que importam, mas não sabem discorrer sobre eles.

Têm sensibilidade, mas o sistema de ensino não está à altura deles, de seu interesse, de seu potencial. Rir de seus erros é um contra-senso; é como se achássemos hilariante o desastre que o déficit educacional significa para o futuro do Brasil.


Marina Silva é professora secundária de História, senadora pelo PT do Acre e ex-ministra do Meio Ambiente.

Nenhum comentário: