sábado, 26 de abril de 2008

Para quem ainda não leu - I


Estilo é fundamental

Américo Izidoro Ricardi foi meu padrasto-pai por uma década e meia. Conheci-o em 1974, quando eu e minha avó largamos Sant’Anna do Livramento e o fantástico casarão da APAE para retornarmos a Porto Alegre. Fui morar com a minha mãe e, por extensão, com Américo. Ele mantinha a roupa impecável. Ternos sob medida, camisas sedosas e sapatos reluzentes. Lançava moda. Foi, imagino, o primeiro a adotar na capital gaúcha o traje safári, aquele mesmo. Tinha quatro. Também arrojava nos carros. Dizia ter sido piloto. Se de autorama ou corrida, eu nunca soube, mas dirigia muito bem.

Américo era carismático. Conquistava fácil as pessoas. Contava ser amicíssimo do Leonel Brizola, embora o caudilho gaúcho desconhecesse. E assim muitas outras personalidades.Américo Izidoro Ricardi era misterioso. A cada ano sumia durante dois meses. Tomava as bandas do Mato Grosso, onde jurava ter terras pela região do Rio Araguaia. Retornava de lá com maços de dinheiro e abarrotado com flechas e cocares. Várias vezes procurei escalpos, mas não achei. Passei a considerá-lo o Tex Willer brasileiro, amigo das tribos amazônicas. Um dia apareceu com um título nobiliárquico obtido por lá. Comendador Américo. Bom, a partir daí assegurava possuir sangue azul, a mesma cor dos olhos e do time do coração. Passou a apresentava-se sempre assim: “Prazer, comendador Américo Ricardi”. Talvez se sentisse, e fosse, um maçom poderoso.

Américo Izidoro Ricardi era exagerado. Nas paixões, no amor, na bebida, no fumo, na comida e nos gastos. Nas épocas dos bolsos cheios, geladeira sob o regime da raiz quadrada. Adorava esbanjar. Bebia uma garrafa de Old Eight – o melhor naquele tempo, pelo menos para ele - por dia e deixava um J&B na reserva para as visitas ou para o próprio. Duas carteiras de Pall Mall diárias e pacotes na despensa. Nos tempos das vacas magras, fazia leves adaptações à situação financeira, como trocar – momentaneamente – o uísque pelo Velho Barreiro, mas mantinha a quantidade e a altivez. “Sempre sombrio e sólido”, como adorava repetir, após a quarta dose ou terceiro copo. Quando apaixonado por alguém, nossa! Pela minha mãe, sem comentários, era doente. Pelos outros, quase. Chorou copiosamente no percurso do translado do corpo do Tancredo Neves e no enterro do político mineiro, em 24 de abril de 1985. Soluçava. Quase uivava agarrado nas almofadas do sofá ou em pé enquanto servia o panelão com comida suficiente para alimentar o povo brasileiro da época. Havia se encantado pelo então presidente da República eleito pelo colégio eleitoral. “O nosso presidente, o nosso presidente”, proclamava e fungava, sem parar.

Américo Izidoro Ricardi era solidário. Mantinha conta no armazém próximo da nossa casa – providência para os tempos do recesso financeiro. Fingia nem dar bola para a quantidade das anotações. Apenas fingia. Naquela época eu morava no mesmo edifício, porém noutro apartamento, com a minha irmã e o marido dela. Sem dinheiro, apelava à caderneta para fazer lambanças com o recém-amigo Luis Gomes, colega da faculdade de história da PUCRS, e seus dois companheiros do apartamento da Sarmento Leite, na Cidade Baixa: o Paulo Magro e o Totô. Todos estudantes e duros. Eu comprava miojo e uma garrafa de cachaça, sem esquecer dos limões. Toda sexta, o desfalque. Um dia, o Américo me chamou. Pronto, pensei, acabou a fonte. Ele tinha à mão páginas da caderneta. Olhou bem para mim e perguntou: “É tudo teu?”. “Sim”, respondi. “Pra quê?” “Para ajudar meus amigos.” “Então faz o seguinte: troca o miojo por massa mesmo, porque rende e alimenta mais, e leva também bolacha e uma carne de vez em quando”, aconselhou o sábio erechinense. “Na vida, o importante é ter estilo”, completou.

Estilo. Sim, estilo. Tenhamos estilo, sempre, como tinha o grande comendador Américo Izidoro Ricardi.

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