Eu, minha avó, nosso castelo e as cavernas da alma
Nos domingos as almas inquietas flanam. A minha, por exemplo, pulou o muro e enveredou pelo túnel do tempo. Parou no castelo onde morei por quatro anos. Sim, já residi num castelo. Eu e minha avó, Maria Araújo Nunes. Entre 1970 e 1973 cuidamos do casarão da APAE em Sant’Ana do Livramento, na fronteira com o Uruguai. Maria Aparecida Nunes Ronchi, por sinal minha tia, presidia a Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais e nos acomodou naquela casa antiga e misteriosa.Na parede maior da imensa sala central vivia um contrabandista e pirata. Ou seria pirata contrabandista? Tanto faz. Ali ele fora emparedado com suas riquezas.
Receosos em incomodá-lo ou de não saber como lidar com tamanha fortuna, o deixávamos em paz, embora nas noites mais frias do gélido inverno pampiano ouvia-se o murmúrio em sotaque esquisito, metade espanhol, metade siciliano. “Acendam a lareira”, suplicava a voz. No sótão, outro inquilino de vez em quando também importunava, mas somente nas noites de lua cheia. Aí sim, os gatos arrepiavam-se, as ninhadas sumiam e dormir tornava-se suplício. Latidos da cachorrada dum lado e os uivos do lobisomem do outro.
No mais, durante as outras fases lunares reinava a calmaria. O casarão - ou melhor, o meu castelo – me ensinou para a vida. A vida, aliás, escalava os nossos times do futebol no pátio. Crianças sem quaisquer movimentos ou condições de jogar formavam a torcida. Os cadeirantes revezavam-se na posição do goleiro, com a justa proibição dos chutes bem rasteiros ou muito altos. À zaga destinavam-se os fortes, em geral os portadores de Síndrome de Down robustos. No ataque, os desmilingüidos e magricelas serelepes. Tornei-me centroavante. E um apóstolo das diferenças. Para sempre.
Com elas aprendi a filosofia da matemática e a da existência. Foi por acaso. Estava naquela pequena sala quando a jovem professora perguntou a um garoto ceifado de muita coisa por causa da paralisia infantil quanto era 1 + 1. Onze, gesticulou o menino. Claro. Dois é igual a 11. Uma dupla é um time. Eis o princípio da solidariedade, da cumplicidade. Lá, no próprio castelo, vivi isto. Com o escasso dinheiro oriundo da pensão da minha avó comprávamos uma portentosa galinha assada e ninguém passava fome. Quem precisasse de dinheiro ela ainda emprestava. Sem juros.
Maria Araújo Nunes, por sinal, era uma filósofa. Certa feita um pesadelo me deixou sobressaltado. Havia me perdido em uma caverna escura. Ela acalentou-me e profetizou: “Meu filho, não tenha medo de nada, porque cavernas mais profundas ainda fazem parte da nossa alma”. Dormi. Benção, vó, para esta alma inquieta. Saudade.
Um comentário:
Cara, tá muito bom...de um talento estilístico. Dá-lhe professor Álvaro, dono de uma escrita que encanta e de uma inquietude intelectual para ninguém botar defeito.
Postar um comentário