quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Sim, senhor! Não, senhor!


Anatomia de uma entrevista

Luiz Weis - Observatório da Imprensa

Todo dia você lê que o primeiro-ministro Tal ou o presidente Qual disse isso ou aquilo numa entrevista coletiva.

O que você raramente tem a oportunidade de ler é qualquer coisa sobre as engrenagens dessas conferências de imprensa, como são chamadas pela mídia do Norte.

Mesmo quando o entrevistado governa um país em que a imprensa é livre, a entrevista é invariavelmente concebida e construída para garantir que o ponto alto das matérias que dela resultarem seja exatamente a declaração que o governante queria ver nas manchetes – a razão de ser, portanto, da coletiva.

Às vezes as coisas desandam, quando um repórter mais abelhudo (como se dizia nas velhas histórias em quadrinhos) surpreende o pessoal da comunicação do governo com uma pergunta baseada numa informação inédita sobre um assunto já de si inconveniente.

Mas essa é a proverbial exceção que confirma a regra. Primeiro, porque nem todos os membros do corpo permanente de imprensa da sede do governo, automaticamente credenciados para as coletivas, terão a chance de fazer a sua pergunta. Isso não quer dizer que só os muito mansos serão premiados com o direito à palavra, mas talvez queira dizer que os muito bravos serão ignorados.

Segundo e mais importante, porque o entrevistado não cai de pára-quedas na situação: antes da entrevista de verdade, ele já terá dado pelo menos outra, simulada, em que a sua equipe o expôs às indagações mais cabeludas com que poderá ser confrontado. É o chamado media training.

Há pelo menos uma terceira explicação ainda – de que se tratará logo adiante.

O improvável, em suma, é que a imprensa consiga assumir o controle da coletiva a ponto de deixar o rei nu. Frustrados, na grande maioria dos casos, sairão os repórteres que entraram na sala decididos a despi-lo.

Se assim é nas democracias, pode-se imaginar como as coisas acontecem nas ditaduras quando o manda-chuva tem interesse em usar a mídia para se passar por democrata.

Ou melhor, não precisa nem imaginar. Basta ler o relato com que o correspondente do Globo em Pequim, Gilberto Scofield Jr., fez a anatomia da entrevista do presidente Hu Jintao a 26 jornalistas estrangeiros na sexta-feira passada – pura encenação para difundir uma imagem positiva do regime no momento em que o mundo se volta para as Olimpíadas.

Por sorte do jornalista, o único brasileiro chamado para a coletiva – apropriadamente, no cenário majestático do Grande Salão do Povo, na Praça da Paz Celestial – era o seu colega da TV Globo Ernesto Paglia, na China para cobrir os Jogos. Ele entrou no lugar do correspondente da emissora em Pequim, Pedro Bassan, que estava fora da capital, segundo Scofield.

E ele fez bom proveito da circunstância.

Paglia lhe contou que a entrevista foi “um jogo de cartas marcadas”. Dos 26 repórteres, só seis puderam fazer perguntas – “que nem de longe seriam capazes de deixar Hu Jintao numa situação constrangedora”. Ficou claro que as perguntas, “entre o ingênuo e o filosófico”, pareciam previamente conhecidas e selecionadas, ou assim soaram ao brasileiro, um dos outros vinte cujo papel era só o de registrar as palavras do timoneiro de turno da República Popular.

Exemplo: “Qual a programação cultural da China durante as Olimpíadas, num momento em que o país busca mostrar a sua riqueza cultural para o mundo?”. Primeiro, isso não é coisa que se pergunte a um presidente, mas a um ministro da Cultura. Segundo, isso não é coisa que se pergunte ao presidente de um país que censura a internet, pratica violações em série de direitos humanos e quebra recordes de poluição.

Pena que Paglia não identificasse o autor da momentosa indagação. Ele só “entregou” o representante da rede Al-Jazira por ter perguntado – parem as máquinas! – como Mao Tsé-tung reagiria ao slogan olímpico “Um mundo, um sonho”.

Em dado momento, o enviado da Globo comenta com o colega:

”Eu posso entender a pressão que deve sofrer um correspondente num país que controla a imprensa desta forma. Ao contrário dos jornalistas que vieram para as Olimpíadas e vão embora ao fim do evento, os correspondentes ficarão aqui e dependerão do governo chinês”.

Está aí a terceira explicação, antes mencionada, para as coletivas serem quase sempre o que os entrevistados queriam que fossem – e não só nos países que controlam a imprensa à chinesa.

Exceto o punhado de representantes dos mais importantes órgãos de mídia, com os quais os governos evitam se estranhar – o pessoal do New York Times, Wall Street Journal, Financial Times, Le Monde e similares –, os demais sabem que só podem esticar a corda até certo ponto. Isto é, se quiserem ter acesso a informações mais quentes do que as do trivial variado dos releases e a encontros informais com os figurões do pedaço, o que faz toda a diferença num ambiente jornalístico altamente competitivo como o da mídia estrangeira em Pequim.

O sujeito pode até escrever matérias críticas sobre o regime. O que não pode, em hipótese nenhuma, é entornar uma entrevista coletiva do líder com uma pergunta que não estava no script, ou com palavras que poderiam deixá-lo mal na fita.

E isso não acontece só entre governos e correspondentes estrangeiros. No tempo da invasão do Iraque, a Casa Branca de Bush tratava a pão-de-ló os repórteres americanos credenciados que não criavam problemas com as justificativas oficiais para a guerra, muito ao contrário, e a pão e água os “difíceis”, criadores de casos.

Quando estes levam um furo, os seus chefes não querem saber por que a concorrência deu o que eles não deram, trabalhando todos, por assim dizer, sob o mesmo teto. O que é mais uma razão para o setorista não incorrer na ira de suas fontes potenciais.

Por isso, salvo engano, nenhuma verdade verdadeiramente incômoda para o bushismo foi garimpada por repórteres baseados na Casa Branca. Mas não poucos entre eles, especialmente os da TV, se prestaram ao papel de correia de transmissão das mentiras do oficialismo.

Dependendo do governo e do país, o jogo pode ser mais rombudo ou mais sutil. Mas que existe em toda parte, existe. Os jornalistas sabem disso – mas, a não ser quando resolvem chutar o pau da barraca, deixam o público no escuro.

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