domingo, 31 de agosto de 2008

Waynau bii


O dia da índia Joênia

Flávia Tavares - O Estado de São Paulo

A primeira sustentação oral de uma indígena no STF teve nervosismo, ministro chorando e até sopa

Flávia Tavares, BRASÍLIA

"Essa beca tá curta!", dizia uma nervosa Joênia ao colega Paulo Machado Guimarães na porta do banheiro feminino do plenário do Supremo Tribunal Federal. A agitação da advogada era justificável. Ela precisava estar pronta para ouvir a decisão dos ministros sobre se poderia ou não fazer a sustentação oral de defesa dos seis povos que representa no caso Raposa Serra do Sol. Se eles deixassem, Joênia Batista de Carvalho, 34 anos, seria a primeira advogada indígena a falar ao STF. Se não, a frustração das dezenas de índios à porta da corte e a sua própria seria enorme.

O relator do processo, ministro Carlos Ayres Britto, acatou o pedido. E ela estava paramentada para o momento solene: o rosto pintado com tinta vermelha, em dois traços horizontais e um vertical em cada bochecha, representando "força e lealdade". A beca realmente um pouco curta, mas oficial o suficiente. Um tailleur preto com detalhes em lilás. Um sapato de salto não muito alto. Óculos, livros, um caderno vermelho de capa dura, desses que se usam nos primeiros anos escolares, contrastando com o laptop e o celular.

Do outro lado, estavam os representantes do Estado de Roraima, dos arrozeiros e dos senadores Mozarildo Cavalcanti e Augusto Botelho, requerentes pelo fim da demarcação contínua da reserva indígena. Os três advogados dessas partes falaram primeiro, incluindo o ex-chanceler Francisco Rezek. As sustentações foram incisivas, com momentos em que os índios foram chamados de "minoria pouco expressiva" e acusados de "furtar e roubar" os outros moradores da região. Doutora Joênia ouvia impassível. Fazia anotações e comentários com a amiga Ana Paula Souto Maior, advogada que a auxilia na causa das comunidades Barro, Maturuca, Jawari, Tamanduá, Jacarezinho e Manalai.

Da bancada de advogados, Joênia foi a última a falar. Tirou os óculos e caminhou até o púlpito em passos hesitantes. Surpreendeu os ministros ao abrir sua fala em wapichana, língua que leva o nome de seu povo. Numa casa onde se exibe o alemão, italiano, francês e inglês, sem contar o juridiquês, a advogada usou o seu idioma para decretar "Waynau bii" ou, em bom português, "Basta de violência". A voz trêmula do início foi dando lugar a um tom mais seguro conforme Joênia ia descrevendo o sentimento dos índios da região. "Temos 300 escolas, 5,6 mil alunos, 485 professores. E R$ 14 milhões circulam anualmente na reserva. Mas nossa economia não é contabilizada. Somos caluniados e discriminados dentro de nossa própria terra." Foram 10 minutos falando como num desabafo, com poucos termos técnicos, e o tratamento de "você" dispensado aos ministros. Mas depois ela revelou que isso era estratégico. Os outros dois advogados de defesa - José Antonio Toffoli, pela União, e Paulo Machado Guimarães, pela comunidade Socó - fariam a sustentação mais embasada. Ela estava ali para contar como os índios vêem e sentem a situação.

Podia falar com conhecimento de causa. Desde criança, quando seus avós foram trabalhar nas primeiras fazendas das redondezas de Boa Vista e forçados a aprender o português, ela já ouvia o "tira cerca, bota cerca" que marcaria sua adolescência. Sua comunidade decidira que ela deveria ser professora, para ajudar a educar os indiozinhos que lutariam pelas terras da reserva no futuro. Mas, quando a irmã mais velha morreu ao dar à luz, segundo Joênia por negligência do hospital, ela decidiu que queria fazer mais, à revelia dos líderes wapichanas. Seria advogada. Mudou-se com a mãe para a capital - o pai ficou para trás por não aceitar viver na cidade grande. Estudou por conta e passou em quinto lugar no vestibular da Universidade Federal de Roraima. Na sala de aula, toda vez que a questão indígena era trazida à tona, os colegas olhavam imediatamente para ela. Eram, em sua maioria, filhos de políticos e fazendeiros.

Dois anos depois de formada, em 1999, foi chamada ao conselho dos "tuxauas", os líderes das comunidades - todos homens -, para receber as honrarias e a missão de cuidar de seus irmãos. "Foi um dos momentos mais emocionantes da minha vida. Mas, se eu não tomo cuidado, minha vida pessoal teria fim ali mesmo. Eles queriam dar palpite em tudo", ri-se com seu rosto esparramado. Até o casamento dela com um comerciante "mestiço", com quem tem dois filhos (Cristina, de 13 anos, e Jacson, de 11), já foi pauta.

Desde então, Joênia defende 268 comunidades, atuando pelo Conselho Indígena de Roraima, o CIR. O exemplo da advogada foi seguido por seu irmão, Olavo, que, atualmente, estuda engenharia florestal na Universidade Federal de Brasília (UnB). "Logo eu, que sei tudo de mato... Mas preciso do diploma", dizia, na porta do STF, enquanto esperava a irmã caçula se desvencilhar de dezenas de jornalistas.

Quando o ministro Ayres Britto terminou a leitura de seu voto de 108 páginas, favorável à demarcação contínua da reserva e à causa de Joênia, ela sorriu e comemorou com um olhar para trás, de cumplicidade, para a senadora e ex-ministra Marina Silva. O ministro Carlos Alberto Direito pediu vista do processo, o que já era esperado por Joênia. Os rumores de que isso aconteceria circulavam no plenário desde o almoço. Já sem tinta vermelha no rosto, "que se espalhou, deixando meu rosto mais vermelho", a advogada foi imediatamente ter com os cerca de 30 índios que puderam assistir à sessão ali dentro. Ela explicou que "o jogo está um a zero para nós". Mas tinha dúvidas sobre um trecho do voto de Ayres Britto. Correu para falar com o ministro, esclareceu a questão e ouviu de sua excelência: "Você foi maravilhosa, Joênia. Eu até chorei". Em seguida, um conselho. "Agora, você não pode fazer gol contra, dar tiro no pé. Tem de ser cuidadosa." No que foi complementado por Marina Silva, amiga de outros tempos de Joênia: "Seja diplomática!" Os outros ministros já haviam deixado o plenário e não pareciam tão entusiasmados quanto o relator.

Os índios que tiveram de esperar do lado de fora estavam ressentidos. Joênia não tinha saído na hora do almoço para dar informações sobre a sessão.Deixaram a mágoa de lado para comemorar o primeiro voto favorável. "Foi preciso que uma wapichana, guerreira, fosse defender os macuxis", brincava a advogada, lembrando uma rixa antiga que diz que os macuxis, por ser maioria, não se importavam com outras etnias. Passando a mão nos cabelos negros, ela conta que os macuxis queriam "roubar" as mulheres wapichanas, tão formosas. Parece que, desde um conselho entre os tuxauas em 1971, a rivalidade não existe mais. Eles se uniram para tentar impedir que as terras lhes fossem tiradas.

Exausta, Joênia pegou uma carona com o ator e decano da militância petista Sérgio Mamberti e foi tomar uma sopa. Estava faminta. No dia seguinte, participaria da posse do novo ministro da Cultura, Juca Ferreira. Na sexta, voltaria para Boa Vista. Temerosa, porque já foi ameaçada algumas vezes e perseguida outras tantas, por homens em motocicletas. Mas continuava a repetir o discurso que lhe fora recomendado pelo ministro do STF e pela senadora: "Estou confiante". Discurso que terá de repetir muitas vezes, porque não há previsão para o fim desse julgamento.

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